quinta-feira, 11 de dezembro de 2014




Ana era melhor amiga de Lucia. Que era melhor amiga de Carla. Que era melhor amiga de Tati. Que não era amiga de ninguém. Num dia sem sol, Carla confidenciou à Lucia um segredo mortal. Três horas depois, o telefone de Ana tocou: era Lúcia, que gaguejava sem saber falar. Saíram para ver um filme: Woody Allen fechava o ano com um novo oitavo. Ana sabia que algo a afligia, mas sabia também esperar. Elas não conheceram o homem dos seus sonhos. Mas fora dos sonhos, Carla tinha contado à Lúcia um segredo de Tati – que não era amiga de ninguém. O feito correra vinte e nove quarteirões sem poder ser resolvido: Tati morreria nas próximas vinte e quatro horas. Como assim, é uma brincadeira? Não era. Tati planejara milimetricamente seu plano maligno de morrer - de arrependimento. Não tinha amigos, nem escrúpulos, nem saldo na conta bancária: o momento era chegado com louvor. Nas próximas vinte e quatro horas, vou dizer adeus com um sorriso de quem nunca foi mais feliz. Elas só tinham uma fofoca, alguns trocado e nenhuma intimidade com Tati, que não era amiga de ninguém. Correram para o condomínio, esperando ela sair, mas Tati não saiu. Uma hora e quarenta minutos de espreita, os poucos que entravam e saíam não eram ela. Nem imaginariam o que haveria de ocorrer, e se imaginassem, fingiriam não saber. Duas horas e cinquenta e cinco minutos, as duas amigas entraram num descuido no portão, subiram as escadas e deram de cara com a porta entreaberta do apartamento 302. Entraram. Mas Tati já tinha descido e ido sem avisar – porque não era amiga de ninguém.

segunda-feira, 14 de abril de 2014


Tive vontade de falar. De chorar, argumentar e fazer outro ouvido entender o que uma cabeça cheia de loucura se punha a pensar. Queria dizer, em palavras bonitas de um vocabulário ali perdido: eu te amo, hoje. Poderia não amar amanhã ou depois, poderia morrer de amor, mas nada disso importava naquele hoje. Eu tinha o mar escuro, o céu azul marinho e uma mão segurando a minha mão. Aquilo me bastava de uma forma que a ideia de planejar o amanhã não tinha espaço pra respirar. Tive vontade de gritar e apertar aquele corpo contra meu num ímpeto nervoso de dizer: eu te amo, hoje. Poderia te amar mais amanhã. Poderia implorar um único e solitário beijo, ajoelhar na grama e declarar vitória à paixão. O outro poderia rir dos meus motivos vis, beijar minha mão e dizer adeus. Isso me bastaria. Mas isso eu nunca conseguiria explicar. Eu queria ser dona de uma retórica madura pra fazer o outro entender que nunca tenho planos, especialmente pro amor. Que minhas poucas tentativas de alcançar uma ideia fracassaram por completo, e que, no fracasso, eu sorria. Porque gostava de não saber o que acontece depois. Eu queria tantas coisas que não sabia como dizer. E contrariando os planos rasos, sorri e disse adeus.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014


Ele não tinha ido. Nunca tinha sido parte, nunca quisera ser. 
Não uma parte dela, não por Ela. Nem por tudo que Ela fora até ali. 
Não combinava com nada daquele espaço, porque sabia que se fazia doer. 
Ela não sentia dores. 
De mãos atadas e pose austera, não sabia que existiam mais odores. 
Não se olhava no espelho pelo medo de se ver. 
De peito sempre fechado, não abria portas para amores. 
[n e n h u m] 
Ele não gostava do excesso de sorrisos - que de fora assim se viam -, mas não eram bem assim. Ele exalava, refletia, ocupava, e mesmo cada espaço já preenchido Ele tomava, sangrava, sorria, rasgava e morria. Pra depois se ver renascer. 
Ela não se alterava, não se via nem sentia uma gota de chuva cair. 
Ele, assim, não respirava. 
Ela, assim, não sabia viver. 
Foi um infortúnio, uma perda o desencontro, porque os dois poderiam se apaixonar. Ela saberia o que é amar. Ele poderia ensinar. Ele poderia doer e Ela poderia chorar. Ela poderia sofrer e ele libertar. Eles poderiam, mas só poderiam se Ela soubesse que Ele era a parte única que saberia acalantar.

terça-feira, 23 de abril de 2013



A questão não era desvendar o indecifrável. Os mistérios do coração andam muito longe de um pergaminho qualquer. O que ela queria, naquele instante, debaixo da sua luz solitária e daqueles olhos perdidos, era romancear. O filme indiano que acabara de ser visto falava a mesma língua simples e lúdica das pequenas coisas, como o passeio dos seus dedos pelo braço de um estranho. Era confortável, admitia, sentir-se aconchegada num abraço ainda desprovido das histórias a dois. Quem sabe era esse o sorriso tímido, quase sempre escondido atrás das grandes lentes redondas que encobriam tantas coisas, que quereria ver por muitas e muitas manhãs.
Ele falava palavras difíceis que soavam tão melódicas quanto sua imaginação. Contestava todas as vírgulas do mundo, e ela se encantava mesmo assim. A cena corria em câmera lenta, atenta a todos os minutos que os levavam até ali. Não resistiu e deu-lhe um beijo ousado, romântico, com os olhos fincados na expectativa de tê-lo, finalmente, encontrado. Achava mesmo que aquela postura contestadora e ativa era  o sintoma puro de uma enorme timidez. A tradução oposta do medo de se jogar às imprevisíveis complacências que o encantamento é capaz de causar. A armadura perfeita para uma estratégia de proteção.
Mas num tempo qualquer, por qualquer ou nenhuma razão, num surto cósmico da loucura estimulada, aquele mundo desabou. O pálio era agora amargo, numa quase-acidez que contrapunha os sentidos de seus dedos, escancarava seu sorriso frio. A lucidez que aparentava a crueldade nas palavras não lhe cabia como uma simples tese acadêmica de escola nenhuma. Romper-se assim, e ainda pior, deixar-se romper por fato qualquer e desconhecido era o que a desnorteava. Ela sequer pode esconder. As palavras lhe saíram pela boca ansiosa antes que a razão as pudesse dosar. E o romance, de tanta dor, sucumbiu ali, na agonia feia que não quisera ter.





quarta-feira, 9 de janeiro de 2013


A desconexão de um senso bruto e infiel. Ressentir o vazio, frio, da carne ainda viva. Não sabia ser possível ser assim. Não previa que a expectativa pudesse ser frustrada pelo conteúdo anti sensorial. Só a melodia poder-lhe-ia tocar? Vivo do antigo, do velho, e ainda assim no agora. Não no antes ou depois.  Onde fora repousado o encanto detalhado, que agora vejo claro como uma ilusão criada para a auto satisfação. O preenchimento de espaços que nunca se completaram. Continuam aqui, largos e vagos.

A morbidez da pele, que autônoma, repele o que o desejo inventou. Não fora desejo o que vira no gozo prazeroso de um impossível amor. Eram cifras. Vagamente ouvidas. Era tudo que herdara do rancor. A última derrota foi a infeliz vitória que a essência planejou. O último romance era o cerne da loucura, cuja abrupta ruptura fora o que mais amou. Vivia em passos repetidos de prazer impassível em manter-se na inércia para criar o sofrida e esgotada inspiração.  

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013



Algumas vezes perdida na luz. Outras, perdida no negro. A cadência das linhas toma formas mais brutas, emerge na cor e se fixa no limite do abismo. Há espaços não preenchidos na imensidão de um fundo vazio, como lacunas da própria identidade. É complexo entender-se a partir de tantos olhos. Evolui num retiro de si mesmo, na involução da apropriada forma que toca o positivismo da rotina. Na tentativa de quebrar-se, mergulha numa inocência de traços bobos. Espalha-se. Derrama-se. Parece resistir a própria imagem. Deita-se. Num surto de loucura, vermelha-se. Até que o âmago da consciência implore remissão.