Ana era melhor amiga de Lucia. Que era melhor amiga de Carla. Que
era melhor amiga de Tati. Que não era amiga de ninguém. Num dia sem sol, Carla
confidenciou à Lucia um segredo mortal. Três horas depois, o telefone de Ana
tocou: era Lúcia, que gaguejava sem saber falar. Saíram para ver um filme:
Woody Allen fechava o ano com um novo oitavo. Ana sabia que algo a afligia, mas
sabia também esperar. Elas não conheceram o homem dos seus sonhos. Mas fora dos
sonhos, Carla tinha contado à Lúcia um segredo de Tati – que não era amiga de
ninguém. O feito correra vinte e nove quarteirões sem poder ser resolvido: Tati
morreria nas próximas vinte e quatro horas. Como
assim, é uma brincadeira? Não era. Tati planejara milimetricamente seu
plano maligno de morrer - de arrependimento. Não tinha amigos, nem escrúpulos,
nem saldo na conta bancária: o momento era chegado com louvor. Nas próximas vinte e quatro horas, vou dizer
adeus com um sorriso de quem nunca foi mais feliz. Elas só tinham uma
fofoca, alguns trocado e nenhuma intimidade com Tati, que não era amiga de
ninguém. Correram para o condomínio, esperando ela sair, mas Tati não saiu. Uma
hora e quarenta minutos de espreita, os poucos que entravam e saíam não eram
ela. Nem imaginariam o que haveria de ocorrer, e se imaginassem, fingiriam não
saber. Duas horas e cinquenta e cinco minutos, as duas amigas entraram num
descuido no portão, subiram as escadas e deram de cara com a porta entreaberta
do apartamento 302. Entraram. Mas Tati já tinha descido e ido sem avisar –
porque não era amiga de ninguém.
Cotonetedecrepom
quinta-feira, 11 de dezembro de 2014
segunda-feira, 14 de abril de 2014
Tive vontade de falar. De chorar,
argumentar e fazer outro ouvido entender o que uma cabeça cheia de loucura se
punha a pensar. Queria dizer, em palavras bonitas de um vocabulário ali
perdido: eu te amo, hoje. Poderia não amar amanhã ou depois, poderia morrer de
amor, mas nada disso importava naquele hoje. Eu tinha o mar escuro, o céu azul
marinho e uma mão segurando a minha mão. Aquilo me bastava de uma forma que a
ideia de planejar o amanhã não tinha espaço pra respirar. Tive vontade de
gritar e apertar aquele corpo contra meu num ímpeto nervoso de dizer: eu te
amo, hoje. Poderia te amar mais amanhã. Poderia implorar um único e solitário
beijo, ajoelhar na grama e declarar vitória à paixão. O outro poderia rir dos
meus motivos vis, beijar minha mão e dizer adeus. Isso me bastaria. Mas isso eu
nunca conseguiria explicar. Eu queria ser dona de uma retórica madura pra fazer
o outro entender que nunca tenho planos, especialmente pro amor. Que minhas
poucas tentativas de alcançar uma ideia fracassaram por completo, e que, no
fracasso, eu sorria. Porque gostava de não saber o que acontece depois. Eu queria
tantas coisas que não sabia como dizer. E contrariando os planos rasos, sorri e
disse adeus.
quarta-feira, 29 de janeiro de 2014
Ele não tinha ido. Nunca tinha sido parte, nunca quisera ser.
Não uma parte dela, não por Ela. Nem por tudo que Ela fora até ali.
Não combinava com nada daquele espaço, porque sabia que se fazia doer.
Ela não sentia dores.
De mãos atadas e pose austera, não sabia que existiam mais odores.
Não se olhava no espelho pelo medo de se ver.
De peito sempre fechado, não abria portas para amores.
[n e n h u m]
Ele não gostava do excesso de sorrisos - que de fora assim se viam -, mas não eram bem assim. Ele exalava, refletia, ocupava, e mesmo cada espaço já preenchido Ele tomava, sangrava, sorria, rasgava e morria. Pra depois se ver renascer.
Ela não se alterava, não se via nem sentia uma gota de chuva cair.
Ele, assim, não respirava.
Ela, assim, não sabia viver.
Foi um infortúnio, uma perda o desencontro, porque os dois poderiam se apaixonar. Ela saberia o que é amar. Ele poderia ensinar. Ele poderia doer e Ela poderia chorar. Ela poderia sofrer e ele libertar. Eles poderiam, mas só poderiam se Ela soubesse que Ele era a parte única que saberia acalantar.
terça-feira, 23 de abril de 2013
A questão não era desvendar o indecifrável. Os mistérios do coração
andam muito longe de um pergaminho qualquer. O que ela queria, naquele
instante, debaixo da sua luz solitária e daqueles olhos perdidos, era
romancear. O filme indiano que acabara de ser visto falava a mesma língua
simples e lúdica das pequenas coisas, como o passeio dos seus dedos pelo braço
de um estranho. Era confortável, admitia, sentir-se aconchegada num abraço
ainda desprovido das histórias a dois. Quem sabe era esse o sorriso tímido,
quase sempre escondido atrás das grandes lentes redondas que encobriam tantas
coisas, que quereria ver por muitas e muitas manhãs.
Ele falava palavras difíceis que soavam tão melódicas quanto sua
imaginação. Contestava todas as vírgulas do mundo, e ela se encantava mesmo
assim. A cena corria em câmera lenta, atenta a todos os minutos que os levavam
até ali. Não resistiu e deu-lhe um beijo ousado, romântico, com os olhos
fincados na expectativa de tê-lo, finalmente, encontrado. Achava mesmo que
aquela postura contestadora e ativa era
o sintoma puro de uma enorme timidez. A tradução oposta do medo de se
jogar às imprevisíveis complacências que o encantamento é capaz de causar. A
armadura perfeita para uma estratégia de proteção.
Mas num tempo qualquer, por qualquer ou nenhuma razão, num surto
cósmico da loucura estimulada, aquele mundo desabou. O pálio era agora amargo,
numa quase-acidez que contrapunha os sentidos de seus dedos, escancarava seu
sorriso frio. A lucidez que aparentava a crueldade nas palavras não lhe cabia
como uma simples tese acadêmica de escola nenhuma. Romper-se assim, e ainda
pior, deixar-se romper por fato qualquer e desconhecido era o que a
desnorteava. Ela sequer pode esconder. As palavras lhe saíram pela boca ansiosa
antes que a razão as pudesse dosar. E o romance, de tanta dor, sucumbiu ali, na
agonia feia que não quisera ter.
quarta-feira, 9 de janeiro de 2013
A
desconexão de um senso bruto e infiel. Ressentir o vazio, frio, da carne ainda
viva. Não sabia ser possível ser assim. Não previa que a expectativa pudesse
ser frustrada pelo conteúdo anti sensorial. Só a melodia poder-lhe-ia tocar?
Vivo do antigo, do velho, e ainda assim no agora. Não no antes ou depois. Onde fora repousado o encanto detalhado, que
agora vejo claro como uma ilusão criada para a auto satisfação. O preenchimento
de espaços que nunca se completaram. Continuam aqui, largos e vagos.
A
morbidez da pele, que autônoma, repele o que o desejo inventou. Não fora desejo
o que vira no gozo prazeroso de um impossível amor. Eram cifras. Vagamente
ouvidas. Era tudo que herdara do rancor. A última derrota foi a infeliz vitória
que a essência planejou. O último romance era o cerne da loucura, cuja abrupta
ruptura fora o que mais amou. Vivia em passos repetidos de prazer impassível em
manter-se na inércia para criar o sofrida e esgotada inspiração.
quarta-feira, 2 de janeiro de 2013
Algumas
vezes perdida na luz. Outras, perdida no negro. A cadência das linhas toma
formas mais brutas, emerge na cor e se fixa no limite do abismo. Há espaços não
preenchidos na imensidão de um fundo vazio, como lacunas da própria identidade.
É complexo entender-se a partir de tantos olhos. Evolui num retiro de si mesmo,
na involução da apropriada forma que toca o positivismo da rotina. Na tentativa
de quebrar-se, mergulha numa inocência de traços bobos. Espalha-se. Derrama-se.
Parece resistir a própria imagem. Deita-se. Num surto de loucura, vermelha-se.
Até que o âmago da consciência implore remissão.
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